Maestria para além da batuta: Ricardo Rocha traduz música para alma à frente da Cia. Bachiana Brasileira

Com concerto especial no Centro Cultural BNDES, a Cia. celebra 275 anos de vida póstuma de Bach e reafirma a missão do maestro Ricardo Rocha com o estudo da música clássica nacional

ENTREVISTAS

9/10/20259 min read

Foto: Alexandre Brum

A missão de um maestro vai além de conduzir uma orquestra com uma batuta. A maestria está em interpretar uma partitura, muitas vezes feita há centenas de anos, comunicar-se com os músicos e, por fim, transformar os sons em uma experiência, digamos, espiritual para o público, assim, o maestro Ricardo Rocha encara a missão dele à frente da Cia. Bachiana Brasileira que há 39 anos enaltece a Música de Concerto Brasileira, MBC, termo criado por Ricardo em referência a MPB. Após um hiato de três anos, a Orquestra se apresentará no Centro Cultural BNDES numa homenagem aos 275 anos de vida póstuma de Johann Sebastian Bach, no dia 12/09, às 19h. Uma Ode a Imortalidade!

O maestro Ricardo Rocha tem a vocação musical na alma. Com certeza estava predestinado a uma vida para estudar e interpretar os maiores compositores que a música clássica já produziu em todos os tempos. Desta fluente percepção musical, Ricardo ganhou uma bolsa de estudos entre candidatos de toda América Latina, que o levou a estudar regência na Universidade de Karlsruhe, na Alemanha. A originalidade de Ricardo e a forma como ele dá visibilidade à única arte cuja forma é invisível, a música, o tornará um grande maestro. Rocha também é autor de dois livros conceituados no meio musical: Regência uma arte complexa e As nove sinfonias de Beethoven, neste último título, o maestro criou um método inédito e inovador nos estudos musicais em todo o mundo, o que levou a criar um “atlas” de 37 cartas gráficas policromadas, relativo aos movimentos que compõem a Nona Sinfonia de Beethoven.

O livro é um raro exemplo da experiência do maestro-intérprete que se funde com a do analista-teórico. A obra preenche uma lacuna significativa na bibliografia musical em língua portuguesa. Até a publicação em 2013, a maioria dos materiais de análise estrutural das sinfonias de Beethoven estava em outros idiomas. Como um maestro que regeu e estudou diversas obras por mais de 25 anos, Ricardo Rocha oferece insights práticos sobre a gênese e a interpretação das sinfonias.

Foto: Daniel Ebendinger

Uma vida para exaltar a música clássica no Brasil.

O Brasil inegavelmente é o país do samba e do chorinho, portanto muito antes disso, dizer que o Brasil é um país que desde do Império produz os maiores músicos do mundo, até no âmbito da música clássica, não é exagero, é fato! No país que trouxe à cena José Maurício Nunes Garcia, Carlos Gomes e Villa-Lobos, ter uma figura atual que faz reviver através da memória e interpretação musical os gênios da música nacional como o maestro Ricardo Rocha é trazer à luz a história musical do Brasil. Da sua paixão intrínseca por Bach e admiração por Villa-Lobos, nasceu a Orquestra Bachiana Brasileira, que carrega no nome a genialidade desses dois gigantes da música clássica mundial, tendo na figura de Ricardo a missão de tornar notório a contemporaneidade das obras desses mestres.

“O Villa-Lobos foi apaixonado por Bach porque ele tinha uma tia pianista que sempre tocava O Cravo Bem Temperado” de Bach e Villa-Lobos sempre corria para ouvi-la tocar desde criança. Mais tarde, jovem, ele fugia pela janela para tocar com os chorões de violão, mais a frente ele vai declarar que Bach era fonte do folclore universal. Bach em alemão quer dizer riacho, então ele é essa fonte musical. A bachianas bem no seu início virou uma obsessão para mim e acabou me dando a bolsa na Alemanha. O Brasil teve a maior produção musical da história de todas as colônias. Em 1730 em Ouro Preto havia uma igreja em cada esquina com cinco orquestras, criou-se ali grandes compositores brasileiros nesse momento. José Maurício Nunes Garcia era um deles. Nós produzimos os três maiores gênios das três Américas: José Maurício, no séc. XVIII, Carlos Gomes, séc XIX, maior compositor de ópera, referendado até por Verdi e no séc. XX, Villa-Lobos”. - afirmou o maestro Ricardo Rocha.

Foto: Daniel Ebendiger

Um mestre para o Brasil

A primeira formação musical do exímio maestro Ricardo Rocha, não por acaso, se fez valer na Escola de Música Villa-Lobos. A vida musical o levou a montar o primeiro Coro em 1984, mesmo antes de formar-se mestre em regência, pela Escola de Música da UFRJ. Com o primeiro coro apresentou-se no Teatro Rival de Boa Vista, hoje inexistente, mas que à época rivalizava com a Sulamérica. Dois anos mais tarde, nascia a Cia. Bachiana Brasileira que na primeira apresentação teve um público de 1.000 pessoas, na sala Cecília Meirelles. Com vários projetos em mãos e a vontade de fazer no seu tempo presente a melhor época da música clássica no Brasil, Ricardo, se inscreveu numa bolsa de estudo na Alemanha para aprimorar-se na profissão que ansiava dominar. Com uma banca de cinco componentes, três brasileiros e dois alemães e cerca de 50 participantes para uma única vaga em música, Ricardo Rocha angariou a bolsa de estudo sem tocar uma nota, tampouco reger absolutamente nada. Na Alemanha conquistou o título de Kapellmeister em regência de Ópera e Sinfonia, criou e dirigiu por 11 anos o ciclo “Brasilianische Musik im Konzert” para a difusão da música sinfônica brasileira, regeu grandes orquestras como, Sinfônica de Bamberg, Filarmônica da Turíngia e Filarmônica de Sudweatfallen. Anos mais tarde, por acaso, ao encontrar com um dos jurados da banca que o levou para o país do compositor Richard Wagner, muito curioso perguntou: Como ganhei aquela bolsa?

“Foi o brilho dos seus olhos” - revelou um dos jurados ao mestre em regência e Comendador, honra concedida pelo Poder Judiciário, no ano de 1994.

Foto: Gus Bomfim

A arte da regência

A regência como profissão não tem mais de 300 anos consolidada no período clássico. No entanto, a figura de um regente nasce na Grécia com o primeiro bailarino. Naqueles tempos não existia notação musical e no intuito de reger, essa figura dançava não apenas conduzindo, mas induzindo os músicos, numa cultura oral. No barroco esse papel era exercido pelo cravista e violinista, pois nesta época a orquestra era pequena. Porém é na França com Jean-Baptiste Lully que o maestro começa a ganhar destaque com a forma inovadora trazida por Lully que marcou a história da regência musical. Antes mesmo da batuta, Lully regia com um grande bastão para marcar o tempo, batendo-o no chão para manter o ritmo da orquestra. Essa técnica, embora eficaz para a época, teve um desfecho dramático levando à morte de Lully, digamos por um trágico acidente de ofício.

Para o maestro Ricardo Rocha é no romantismo que a figura de um regente se consolida e faz-se necessário, uma vez que, a orquestra ganha números de integrantes exorbitantes, mais ainda, ele acentua que neste período iniciou um culto à personalidade, o ser superior, o gênio, o mito do herói, que têm raízes medievais, não obstante, é resgatado no romantismo.

“No romantismo Deus é considerado morto para Schopenhauer, Nietzsche, Marx e Freud. Isso é uma reação a pretensão racionalista do iluminismo tentando colocar a emoção como parâmetro ao invés da razão. A orquestra nesta época chegou a ter 120 músicos, o que não dá para sustentar esses números nos dias atuais, por questões trabalhistas. No fim do séc. 19, teremos o primeiro grande regente Hans Von Bülow, esse cara vai favorecer muito o Richard Wagner, ele era um cara obsessivo, que fazia os músicos tocar em pé e de cor, imagina?(…) Mas ali pela primeira vez os artistas estavam se desvinculando dos mecenas para ganhar dinheiro na bilheteria, pois, com a Revolução Francesa foram construídos teatros. Então a figura do maestro se torna imprescindível para compor essa nova orquestra para essa literatura sinfônica”. - sinalizou o maestro Ricardo Rocha.

Foto: Meg Lopes

Traduzindo um gênio

Trazer a vida gênios como Bach, Mozart, Beethoven e tantos outros que em cada tempo colaborou para proporcionar um sistema musical que nunca antes nenhuma outra sociedade produziu é um compromisso com a história da humanidade. Uma vida dedicada a decifrar o que esses mestres tentaram elucidar através de notas musicais, contrapontos e melodias, que para um leigo é coisa de outro mundo, mas, para um estudioso é a leitura do divino. Assim, o maestro Ricardo Rocha dedicou-se à arte da regência, formou além da Cia. Bachiana Brasileira, a Escola de Regência Bachiana, que em 25 anos de ensino à interpretação da música clássica culminou nos livros: Regência uma arte complexa e As nove sinfonias de Beethoven.

No livro, Regência uma arte complexa, publicado em 2004, o mestre faz um convite a mergulhar na arte da regência indo além da técnica de mover os braços. A obra é uma contribuição notável para o estudo da regência no Brasil, sendo adotada em diversas escolas de música e elogiado inclusive pelo renomado maestro Isaac Karabtchevsky, que no prefácio escreve: “É a capacidade de Ricardo Rocha em ser abrangente sem ser superficial.

O tema é abordado de forma abrangente e equilibra a técnica com a reflexão. O livro não foca apenas em diagramas de tempo e movimentos de batuta, mas, sim, explora a regência como um ato de comunicação e interpretação artística. Sendo inclusive reverenciado também pelo maior intérprete de Bach na atualidade João Carlos Martins.

No entanto, é no livro As Nove Sinfonias de Beethoven, que o maestro Ricardo Rocha evidencia toda uma vida dedicada aos estudos musicais. Numa publicação com uma rica e luxuosa estética visual, sem deixar de lado a importância literária, Ricardo criou pela primeira vez na história da literatura musical uma fórmula correta para “ouvir” uma das mais importantes sinfonias criada por ninguém menos que Ludwig Van Beethoven. A principal inovação do livro é a representação gráfica das sinfonias. Ricardo Rocha criou "cartas gráficas policromadas" para cada um dos 37 movimentos que compõem as nove sinfonias. Esses gráficos, feitos com diferentes cores, linhas e formas, visualizam as estruturas musicais; como a forma sonata, o rondó, o tema e variações.

Essa abordagem torna a complexidade da música de Beethoven acessível de uma maneira que partituras tradicionais ou análises textuais não conseguem. O maestro não se limita a expor a estrutura, ele a relaciona com o contexto histórico e biográfico de Beethoven, mostrando como a forma musical reflete o turbulento período de transição entre o classicismo e o romantismo.

“Em 2004 eu lancei o livro Regência uma arte complexa, inclusive está esgotado porque entrou na ementa de várias universidades. Levei 25 anos para analisar e criar esse estudo do livro A Nona Sinfonia de Beethoven compasso a compasso. Eu criei essa análise que não existe no mundo, o nome é análise estrutural. Esse livro não é sobre regência, é sobre análise que é um dos pilares. Qual é o projeto da análise estrutural? Você tem que reconhecer as ideias principais quando chega na Nona Sinfonia, o último movimento que tem o coro, vira uma Catedral! Muita gente não entende que isso é a forma que estrutura o termo em variações, os movimentos. A Nona como qualquer sinfonia tem quatro movimentos. A primeira é dramática, a segunda que deveria ser um lied, é um scherzo, um sentimento com caráter alegre. O terceiro é um adágio solene, parece um mar calmo, é contemplativo, quando vai entrar no quarto movimento, Beethoven cria um ambiente recitativo, que vem da ópera, eles entram furiosos fazendo uma ponte para o quarto movimento com o poema de Schiller, uma ode a alegria como uma centelha divina. Vamos lembrar que no séc.19, Deus estava morto para muitos, e essa foi uma declaração de fé de Beethoven. Ele fala: Olhai multidão, olhai pois para além da abóbada celeste. Imagina que hoje você tem o GPS, temos uma visão da terra - reflete Ricardo, seguindo. Para além da abóbada da terra há de existir um criador que cuida de suas criaturas, ajoelhai-vos(...).Esse poema ele descobriu aos 16 anos de idade. 85% das criações de Beethoven é em arpejo, ele tinha muita dificuldade de criar melodias, ele era um gênio do desenvolvimento de uma ideia. Com quatro notas - fá,fá, sol, mi - fá, fá, ré, - cantarola Ricardo, ele vai fazer sete músicas. É um gênio” - concluiu entusiasmado com a constatação sobre Beethoven.