O fabuloso universo das artes clássicas de Marcelo Marques

Com notória trajetória o figurinista, cenógrafo e diretor encanta com suas produções suntuosas

ENTREVISTAS

1/21/20258 min read

Em uma tarde de sexta-feira, onde são criados os icônicos figurinos do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, o diretor e figurinista Marcelo Marques recebeu o Sarau de Grã finos para uma entrevista sobre a carreira dele e os principais trabalhos realizados ao longo da gloriosa carreira de 46 anos dedicados a artes cênicas. Marcelo pode ser descrito como um profissional profundo e erudito por essência. Com mais de 290 espetáculos no currículo, ao lado da grande dama do teatro brasileiro Bibi Ferreira e, nomes consagrados como; Jorge Takla, Charles Moeller, Sérgio Brito e Marco André Nunes, esse apaixonado, grande historiador e comunicador criou os mais deslumbrantes figurinos para as mais variadas árias do teatro líricos no Brasil e exterior. Entrevistá-lo com toda a certeza é uma das grandes memórias que levarei como uma das experiências mais fascinantes que a minha carreira de jornalista já me proporcionou. Afinal, como ele próprio classificou, o tempo de alguém é uma das coisas mais preciosas que uma pessoa pode proporcionar a outra. E isso ele aprendeu com a imortal Bibi Ferreira.

Um contador de história de excelência deve primeiramente ser um sonhador, de que outra maneira poderá, então, adentrar nas mais diferentes histórias e épocas para fazer com que o público suspire, sinta raiva e apaixone-se pelos personagens em cena? Assim, Marcelo Marques faz história onde passa. Do vestido em La Traviata com 10 metros de calda, no qual saíam bailarinas de Degas por debaixo da roupa, ou a criação do icônico figurino de Carmen de Bizet. Tudo que Marcelo cria é para mega produções, e nos fazem testemunhar que a perfeição existe, não obstante, muito antes de ter a carreira consagrada, ele revela que seu grande desejo era ser arqueólogo, pela paixão intrínseca de averiguar histórias de tempos longínquos. O Brasil não ganhou um arqueólogo, mas sim um comunicador da grande arte cênica com muito amor pelo ofício. O último trabalho de Marcelo foi a Ópera Rusalka, encenada pela primeira vez no Brasil. A obra de Antonín Dvořák foi sucesso de público e críticas nas apresentações, sendo inclusive relacionada com o filme; A Substância, pelo drama vivido por Rusalka que se submete a situações improváveis para viver um amor impossível.

O figurinista Marcelo Marques foi responsável por toda a indumentária e cenário da grande Ópera Rusalka, desde a estreia na Espanha, ele criou toda a composição de figurinos para a inestimável obra. Para a personagem principal, Rusalka, foram criados quatro figurinos, que estão interligados a cada momento da saga da “ninfa das águas” na incessante conquista do príncipe, neste conto de fadas repleto de surpresas e tensão. “Essa montagem foi criada para a Espanha. Uma montagem enorme, mas mantemos a qualidade para as apresentações no Brasil. Basicamente, quando crio uma ópera, a primeira coisa que eu ouço é a música. Existe uma dramaturgia na música, uma narrativa, e então leio libretto, o por que foi falado aquele assunto, naquele momento histórico. Esse é o caminho. Dali encontramos as diretrizes para cada momento daquela narrativa. Eu não trabalho com moda. Eu tenho ligação e compromisso com a história - afirmou o célebre figurinista.

Uma das grandes questões que intriga quem assistiu Rusalka é exatamente o porquê ao estar tão linda e plena como humana, no vestido que é o ponto alto da apresentação, um lindo e esvoaçante vestido de princesa branco adornado por um corset de swarovski e gemas naturais, que segundo Marcelo Marques, representa a espinha dorsal de Rusalka e sua epopeia na conquista do grande amor, pasmem, mesmo assim, no auge da beleza, ela não é notada pelo príncipe, que mesmo nutrindo certa paixão por ela, fica atraído pela rival de Rusalka, a bruxa Jezibaba, que veste um lindo vestido vermelho, representando a carne, o sexo, o lascivo, sentimentos bem humanos e que também esta disposta a conquistar o príncipe a todo custo. “ Rusalka é um conto de fadas e, um figurino está ligado ao outro. O vestido azul diz qual elemento ela pertence, ele seria uma roupa de sereia, que não é sereia, mas o público entende dessa forma e a gente não frustra o público. Esse vestido é o primeiro em cena com o corset em swarovski todo bordado a mão e do lado tem umas aplicações que remetem a nadadeiras. O corset de joias se repete no vestido branco, que ela está princesa na corte. E depois do erro trágico de tentar ser algo que ela não é, a réplica do vestido azul, agora na cor cinza, mostra a degradação de Rusalka. Esse vestido é todo bordado com escamas e pele de peixe, ali no lugar do corset de joias, expõe os ossos da personagem, a coluna vertebral dela. A joia de swarovski só existe para mostrar os ossos dela para fora no final - avaliou Marcelo, acrescentando a grande sacada do diretor André Heller- Lopes“ Esse espetáculo tem uma coerência e o mérito e do André, ele mostra que o mundo fantástico e absurdo, não e o mundo da sereia, que é a natureza. E, sim o mundo da corte, aquela corte persa, meio oriental, com excessos de joias, de tecidos, de brocados, o absurdo e aquele mundo rebuscado. O mundo das sereias e o mundo da simplicidade. Gostei muito dessa chave”.

Focus Brasil Awards

As criações do figurinista e diretor Marcelo Marques ganham o mundo e elevam a cultura brasileira nos mais diversos aspectos. Prova disso foi o convite recebido por Marcelo, no ano de 2004, para montar um espetáculo para o Focus Brasil em comemoração aos 30 anos de relações comerciais entre Brasil-China, em Pequim. Das diferenças culturais que separam as duas potências internacionais, Marcelo explorou cada detalhe com maestria e cuidado com a comunicação. A apresentação mostrava a forte herança africana no Brasil, contando desde a relação com os orixás, a colheita de café e a escravidão no Brasil.

Em Pequim, entre um café da manhã para lá de inusitado com direito a iguarias como jacaré grelhado, além da barreira linguística, o espetáculo fez história mostrando através da primorosa pesquisa de Marcelo Marques, as riquezas do Brasil continental e multicultural. “Esse espetáculo contava a história brasileira em Pequim, pelo viés da africanização do nosso povo. Tinha um quadro com todos os orixás, uma versão luxuosa com muitas cores. Tive muito cuidado ao relacionar as cores com determinados sentimentos. No ocidente temos um código de cores e no oriente outro. Me baseei em todo um estudo de heráldica, ainda na Idade Média, por estar contando uma história para o olhar chines. Eu não podia, por exemplo, alterar as cores do orixá. Eu tomei muito cuidado com o vermelho, na China essa tonalidade representa para eles a alegria, mas, para nós brasileiros representa paixão, caráter sexual, sensual, sangue, guerra. Para eles, o vermelho não é sobre isso. Essa pesquisa demonstra que quero me comunicar com o povo chines. Eu como um contador de história tive que entender o idioma, a língua deles para representar a nossa cultura com os códigos deles. No caso das cores, elas falam um idioma e de lá é diferente do nosso. Eu desenhei muito nesse espetáculo para traduzir essa linguagem. E valeu a pena foi um sucesso”. - contou o talentoso figurinista.

De Bibi Ferreira a Armide: A obra e o criador

Com inúmeras obras clássicas no currículo, Marcelo Marques tem na pesquisa seu maior trunfo para inovar e encantar com as árias milenares que produz. Da paixão pela indumentária, ele relembra a convivência com a avó, que em 1940 tinha uma famosa Casa de Moda no Rio de Janeiro: Madame Marques. Quando iniciou na costura, a avó já tinha idade avançada, mesmo assim, Marcelo lembra que a matriarca sempre dava conselhos e incentivava a curiosidade do neto.


Do fascínio por vestidos esvoaçantes, Marcelo guarda na memória um vestido feito pela avó para os 15 anos da mãe dele. Dessa memória afetiva, ele afirma tirar as inspirações para fazer os vestidos “absurdamente” lindos que compõem os figurinos das óperas. “Adoro fazer as mulheres do teatro ficarem lindas. E esse vestido icônico que minha avó fez para minha mãe, sempre está nas minhas lembranças quando começo a criar”- relembrou saudoso.

Uma das grandes inspirações de Marcelo, além da avó, é a grande dama do teatro brasileiro Bibi Ferreira. Da produção do Bibi in Concert, no qual, ele fez todo o figurino, Marcelo carrega uma admiração incondicional pela artista. Ele relembra as conversas intermináveis e admiração pela musa que o fazia assistir todos os ensaios de Bibi mesmo quando não trabalhava com ela. “Sou muito grato por tudo que aprendi com essa mulher. Quando era um menino, eu vir “Gota d'água” no teatro, quando olhei aquela dama sendo aclamada com teatro lotado e as pessoas aos prantos eu pensei: Se nesse ofício da para tocar as pessoas dessa maneira. Quero fazer isso na minha vida” - afirmou o célebre diretor.

As super produções que Marcelo fez para o Teatro Mundial, estão algumas que ele carrega com carinho na memória. Da lindíssima Sansão e Dalila com uma indumentária forte e cheia de significado feita com a cantora lírica Denise Fraga, até a trágica Armide, obra barroca francesa do séc. XVII, do compositor Jean-Baptiste de Lully, no qual, Marcelo fez uma profunda pesquisa, tendo inclusive estudado os códigos do barroco francês com a Academia de Música Barroca de Versailles, que participou do início da montagem que ocorreu no Teatro da Paz, em Belém. Desta epopeia artística, Marcelo se debruçou na história. Intrigado, pelo fato do Rei Louis XIV, nunca ter assistido a grande ópera de Lully, o que causou muita tristeza e frustração no artista, ele descobriu uma trama entre a amante do Rei, com magia negra de cunho sexual, fetos e metade da corte da época envolvida para escolhida de Louis XIV cair nas graças dele. Desse escândalo, que o Rei tentou de todas as maneiras esconder, a obra do compositor ítalo-francês, que passava-se em Damasco, mas tinha no enredo a feitiçaria como tema, nunca foi assistida pelo monarca, o que acarretou profunda mágoa em Lully, que não entendia o despeito do Rei da França.” Eu nunca inicio a criação pela roupa. A roupa é a última etapa. Armide tem uma coisa que é incrível, ela é uma princesa, que defende seu povo, em Damasco, na Síria. E Renaud, vai para Damasco para catequizar os muçulmanos. Armide decide matar Renaud, porém se apaixona por ele. Ela faz mil feitiçaria para manter ele perto dela. Eu acho que essas duas almas, essa mulher que estava lutando pelo seu povo, porque estavam matando o povo dela e, esse homem, que defendia o lado dele da história eram duas figuras de grande nobreza. E eles provam a nobreza deles a ópera inteira, mesmo no final quando a magia é desfeita e os companheiros dele falam; vamos embora você está livre, ele diz: “Nenhuma nobreza e nenhuma glória do mundo justifica a gente deixar uma mulher nesse estado de desolação.” -ele é muito digno. E o encontro de duas almas de grande dignidade” - filosofou Marcelo.

Marcelo Marques finaliza a entrevista deixando claro seu respeito pela plateia, algo que ele aprendeu com Bibi Ferreira, segundo ele, a dama do teatro sempre dizia que a plateia é o único consumidor que compra o espetáculo sem saber o que irá assistir. “ o que fazemos em cena e uma comunicação, uma ponte entre o artista e a plateia, então o artista tem de estar feliz com que esta usando para passar essa emoção ao público, que merece todo o carinho e respeito”. - declarou o célebre diretor, figurinista e cenógrafo brasileiro.